sexta-feira, 29 de junho de 2007



Corremos sobre a espada de luz e ninguem nos pode parar. A noite, vestida de veludo cinzento, embainhou a espada de luz, sobre o mar.

Amo o vento sobre o estio, a chuva que salpica os caminhos, o calor das falésias. Sou em tudo, nada me detém - nem eu mesmo.

...



Sonho-me. Vejo o meu corpo desfocado. Sonho-me com imagens que se encaixam com peças de um grande jogo, e entre elas as imagens dos espelhos - nestes estão reflectidas formas de afectos - sentimentos em expressão tonal - uma sonoridade familiar. Tenho um corpo outro, moldado por uma configuração que nunca foi a minha - e circulo, como uma briza, entre o que é matéria de reflexo. Corpos de gente indefinida, dos quais vejo apenas a silhueta recortanta entre a vibração tonal emanada pelos espelhos. Temos os pés emersos em água - ou será mercúrio? Sinto toda a planta dos meus pés. Olho as minhas mãos. E tudo se condensa agora no meu peito - uma dor antiga, cuja origem não me recordo, cuja presença sabe mais de mim do que eu próprio. Participa, de algum modo indefinido, da delicadeza com a qual o vento toca, nos dias do estio, o teu pescoço. Tens um pescoço dourado. Vejo as peças do grande jogo - encaixadas como espelhos - entre estas, o veludo dourado do teu pescoço, um vibrato azul, muito ténue, da cadência suave da tua respiração.

Um raio único

As manhãs já não foram com se esperava que fossem. Ali, passou a saber que os dias tinham a duração das horas e que as horas nunca demoravam mais do que um ano. Ou dois. Aí, a expectativa anulou-se, como se espera que se anulem os desejos.E as esperas longas. Afinal, não poderia esperar por ninguém, nem por nada. Porque todos se incluiam, em dimensões variáveis, num corpo único.
Numa dessas manhãs, em que delas já se sabia não se poder desejar a continuidade de um dia, o Sr. A.R. pensou ter encontrado a particularidade do sistema. E pensou poder congregar - nesse pensamento - todos os principios alquimicos onde a acção implicada em VITRIOL organiza em medida de ordem e potencialidade, escapando à margem entrópica de tudo o que já havia analizado, a franja de todas as expectativas.
Dançam dois raios dourados das manhãs, pelas paredes demasiados brancas. Pelo caminho, cruzam-se com a poeira semi-suspensa. A poeira dos dias e do que ficou dos encontros. Afinal, nada disso é assim tão importante. Sr. A.R. tentava convencer-se disso.
Somos em espaço negativo ou somos em espaço positivo? Ou será que somos o espaço que de delimita pelos encontros. Espaços que combinam mundos, que geram galaxias, que instauram campanhas arqueológicas nos passados e fragmentam os cristais do hábito. Confirmava-se, na observação atenta da poeira, o que no peito de Sr. A.R. doia em vazio: os fragmentos dos espaços gerados dos momentos, presentifica-se em poeira suspensa, delimitada a ouro pela luz.
A ausencia em tudo se confirma. A distancia revela o banal, o brilho das coisas participa de Deus. Como o brilho do teu olhar, acrescentou, sussurrou, repetiu num quase silencio. É aí que se condensam todos os fogos, onde não somos nem um nem dois, nem todos nem passado, nem eu nem tu. Um corpo único - o fogo que queima o tempo na sintese dos dias nas horas e nas horas que sempre ultrapassaram um ano.
Um raio único cruza a poeira dos dias. No meu peito repousa um guerreiro.

quinta-feira, 28 de junho de 2007

Botânica

Acordo e sinto o teu perfil, desenhado a luz, contra o papel adamascado deste quarto antigo. Tão antigo. Sinto-te na antiguidade ancestral da tua presença no meu corpo. Disseram-me que as paredes deste quarto contam estórias de feitiçaria e magia cigana, e que sabem das mágoas e dos sonhos de todos os que aqui adormecem. De todos os que dão a mão, perdendo-se, na companhia de Orfeu. Disseram-me também, que pelos ramos do padrão do papel de parede, elas os agarram, devendo-se a esse fenómeno, a distinta variedade de flores que compõe esta parede. Diz-se, e eu confirmei, que os sonhos aqui capturados são pelas flores guardados, enformando as pétalas, caules e folhas impressas nessa superficie acetinada, brilhante.
Sinto as minhas costas estenderem-se contra o colchão mole. Também são costas antigas. Na ausência do teu perfil, tento localizar no papel de parede os teus sonhos, e os sonhos que aqui sonhámos juntos.

O Jogo dos espelhos.No silêncio, tal como na ausência

Por vezes, no lusco-fusco da consciência, quando ainda não dormimos mas também não estamos despertos, sonhamos - ou melhor, somos visitados. Somos atravessados por vidas - strata de imagens, arqueologias de afectos, condensados de sentimentos e fotografias desfocadas de nós mesmos.
Num desses dias em que as chuvas cobriram de verde os caminhos e em que o capim se perfumou de frondoso lustre, fui visitado. Num espelho, outro espelho estava reflectido. Um espelho que é objecto de um outro espelho confirma a natureza do espelho, pensei. Confirma-se a si mesmo. Deixei de respirar. O espelho não se limitava a reflectir e, no espaço tenso deixado pela suspensão da minha respiração, tive a certeza de que os espelhos se procuravam nos reflexos. Sabiam-se não coincidentes com a moldura ( uma barroca, outra resultado dessa linhagem de objectos nascida depois da grande exposição de 1925), nem com a forma. Nem com o tempo, nem com os percursos ( quantas vidas não viram já os espelhos de tantos séculos').
Encontravam-se na matéria do reflexo, confirmavam-se no encontro com o outro espelho, sem no entanto, nenhum deles ter consciencia de ser um espelho - o reflexo do mesmo encontra o mesmo, mas sem objecto, o mesmo é o seu próprio encontro. O Jogo dos espelhos. Acordei, ou melhor, regressei. A chuva rolava, de novo, em fiadas de pérolas pelos vidros do carro. A viagem continua. Como o jogo dos espelhos.
Os rails rasgam a branco, sincopada e ritmicamente, a chapa nocturna. Deixou de chover.A viagem continua. Sinto o cheiro húmido da noite e tenho por companhia estes céus estrelados que somente o hemisfério sul nos pode dar. No silencio, tal como na ausência, todas as presenças se confirmam.
Viajo como um cometa, tenho cauda de asfalto.
Sempre soube que é na noite das viagens que as memórias me tomam - ecoam, formatadas à medida da música que salta do rádio. E deixo de ouvir. Sou tomado pela imagem do eco das semi-transparências que se encadeiam, entre mim e a estrada que corre, como embaixadas exóticas de raridades, aberrações e sublime maravilhoso. No exubrante cortejo que se anima sobre o tablier do carro, vejo-vos a todos. Por vezes sinto o cheiro dos momentos mais felizes, e com estranheza o calor, a vibração de alguns corpos com que me cruzei. Tudo se actualiza quando sinto. Quando sinto uma saudade tão antiga, uma saudade de um silêncio antigo.
No silêncio, tal como na ausência, todas as presenças se confirmam.