sexta-feira, 20 de março de 2009



Cada noite, conto-te uma estória, das que tu me ensinas. Aprendi a ler o mundo, no desfolhar das copas e no brilho salgado das ondas. contigo. Na tua presença, voltei a nascer, em cada toque, em cada sensação. Conto-te as estorias do mundo que me mostras, da vida que tu me ensinas. Cada noite, antes de te ver partir.

pérolas


As mãos eram pequenas, muito. Muito apertadas, uma contra a outra, não fosse nenhuma delas fugir. De resto, nada indiciava o seguinte desfecho verbal. A senhora, bem posta nas suas pérolas e numa imaculada elegancia de Angorá disse pois:
um dia, quando começar a chorar, nunca mais irei parar.  Até o jovem salgueiro se vergou, seguindo a concordância do vento.  

quarta-feira, 18 de março de 2009

Afinal




Caminhamos sobre o reflexo das estrelas,  no  mar vestido de negro e de espada embainhada. Dirigimo-nos ao horizonte. Não temos destino. 
Ouvimos distantes as pedras rolar, na borda deslizante da baia outrora quente e perto o estalar das gotas da chuva.



Somos tão livres de nos mesmos, tão perto de tudo. Eu e tu. Caminhamos sobre as estrelas, rumo ao horizonte. Sei dizer que te amo em vários idiomas. Sei dizê-lo, mas nem no meu o sei sentir. Vejo como o verde dos teus olhos se adensa, fundo, na minha incerteza. 
Pelas tardes quentes, sinto as tuas costas contra a minha barriga. Esperamos que anoiteça. Digo-te que sei dizer, em vários idiomas, que te amo, mas sei que nem no meu o posso sentir. Somos o mesmo corpo, a mesma textura, a mesma cor. O vento brilha no teu cabelo. Esperemos que anoiteça. Caminharemos sobre a estrelas. a chuva apaziguará o meu coração. Afinal.

terça-feira, 17 de março de 2009

Sorbonne



Gosto de beber café de manhã. E gosto das espirais perfumadas que se dispersam, ritmadas e acres, pela atmosfera em silêncio da minha recém-acordada casa. 

Por incrivel que pareça, ontem de manhã, antes da casa acordar, das espirais flutuarem e do soalho ranger, o telefone tocou. Sim, não é o facto de um telefone tocar que torna tudo isto matéria singular. O insólito reside no facto de que: 1º eu não tenho um telefone; 2º ouvi as declarações mais desacertadas; 3º nunca estudei na Sorbonne.

O soalho range - é antiga a minha casa. 
Como toca um telefone se não tenho telefone? como toca um telefone amarelo torrado, no centro no meu corredor? ...nunca mais bebi!
- estou? balbucio rouco. Ouço uma musica infernal, vinda do outro lado. Festiva, Balcãs?! Balcãs?! Alguem me liga dos balcãs em festa para um telefone de fio desligado, amarelo. amarelo!
-Sim, está certo no que afirma senhor. Ouvi vindo do outro lado. Lamento informa-lo, mas aqui fala do departamento da Alegria de Viver. disse uma voz de mulher, firme. Em virtude das suas ultimas questões existenciais, continuou, vimo-nos obrigados a estabelecer este contacto.
- boa... respondi. bem quer dizer, obrigado, não sei...
- Pois sim, tendo em conta que tem tentado regrar o irregravel, preocupando-se, a Comissão Instaladora das Celebrações, vem lembrar-lhe a alinea a) do artigo 1º do Código dos que Cumprem as suas Obrigações.
-Ok...diga lá...
-Lembro-lhe, continuou a mulher, que toda a celebração, todo o encontro funciona como uma chama - reúne dois ingredientes e a partir destes consome-se a si mesma. Alegria de viver...meu caro...alegria de viver...julgámos, precipitadamente, verifico, que tinha assimilado isto no seu ultimo ano na Sorbonne. Pois...suspirou...e espero que se recorde também que em virtude deste facto, jamais poderá impor regras, normas, o que for dessas coisas banais, burguesas -, a qualquer celebração, mas, e tão somente, disfruta-la. Aí reside a magia das celebrações, a intensidade dos encontros.

- pois, se a senhora o diz...'tou?! 'tou?. Nem voz nem musica. Mas que mal educada! Como?
-Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii. ouço somente um longo e solitário piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii.

Estou desolado. Depois do telefonema voltei a dormir. E nunca mais encontrei um telefone amarelo.

America dos Indios

Encontrámo-nos na minha varanda, já de madrugada. A silhueta do Poodle de robe turco recortou-se contra o rio. Constatamos, em silencio, o imenso transito - as luzes pequenas, as luzes que cruzam a superfície rasgada, ao meio, pelo rasto da lua. Circunspeto, mas sempre displicente, o Poodle fixa-me. Com seus olhos muito pretos, muito pequenos, muito condensados. Diz: temos que devolver a América aos Indios.

...enfim





um dia ligo-te para combinarmos, sei lá, e chorarmos um bocado

enfim.

nas ilhas das noites quentes



Lânguidos e lentos foram os dias que prolongaram o verão por um tempo surdo. Os corpos, já cansados de lutar contra a secura, recordavam os tempo em que a chuva cobriu de verde os caminhos e vestiu de frondoso lustre o capim. Dos dias em que mordiamos bagos de café, torrado. E depois de tudo, quando a luz da manhã cruzou o pó suspenso, regressámos aos tempos em que atravessámos um continente, recordámos os encontros perdidos, e a dor de ser somente por nada mais sobrar que o hábito de ser. Em silêncio, lembrei os corpos que me cruzaram sem me sentirem. E não consegui deixar de pensar no nosso reflexo, pelas montras de tantas cidades e nas janelas dos comboios - de tão parecidos que fomos, ao ponto de nos termos julgado como o mesmo. E perdi-me nas horas que entraram pela tarde, recordando, como me havia perdido em tempos, pelos teus braços, desenhados com mapas celestes em marcas douradas. Prolongavam os meus, num espanto quase insuportável, gerando o céu onde explodiu o meu peito - como nunca dantes, nas ilhas das noites quentes. Descanso agora. Já não tenho corpo nem sinto o sabor do café. 
Lembro-me somente que te recordavas, na primeira noite em que te senti, que havíamos estado juntos, numa vida antes de termos nascido.

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um homem cruza o tempo, sem imagem, sem corpo. traz consigo uma dor que não lhe pertence, uma bondade que de si brotou. todos. visita-me em silhueta, todas as noites. aguarda-me num umbral de luz. uma janela, uma porta, não me sei. quem a deve atravessar? quantas vidas já viveu antes de viver a minha?

a mala

Sempre gostei de olhar para dentro da mala das senhoras. É um pouco inconveniente, eu sei – e há quem não goste. Com um olhar certeiro lançado para dentro de uma mala, consigo fazer uma rápida arqueologia dos afectos, das afinidades electivas, dos gostos e até de segredos de quem a usa. Já vi muitas malas. Malas no metro, malas no ginásio, malas no comboio, malas no avião, malas nas bibliotecas, malas de namoradas, malas de amigas, malas das tias, malas das avós, a mala castanha da minha mãe, malas singelas, malas obscenas, malas desarrumadas, malas aprumadas. Escovas de cabelo, baton, agenda, chaves de casa, as vezes do carro. Por vezes um livro, normalmente romances, e sempre um telemóvel. Apesar de tudo, o conteúdo pouco varia.
Um dia encontrei uma mala preta. Não era de ninguém, era por sim mesma. Não existia por ser de alguém, sempre existiu como mala sem que para o ser tivesse de ser submetida ao uso. Cruzámo-nos numa casa de chá. Eu bebia chá de âmbar e as minhas mãos – mãos iluminadas pelo Inverno rasante, partilhavam com o tampo da mesa a sombra do gradeado da janela.
A mala estava lá sentada, à minha frente, muda. Mala média, preta, tecido, indiferente, prática. Para usar a tiracolo. A primeira e única coisa que me disse – e com orgulho - foi: Nunca fui roubada. Nada mais soube, pela sua própria voz. E nunca soube porque é que ela estava naquela casa de chá, porque é que me disse aquilo, como lá chegou e para onde foi. Também não me preocupei com o assunto. Nem, naquele momento, se seria a mala de alguém. Estava ali, sentou-se na minha mesa e falou comigo. Que argumentos mais necessito para justificar o facto de a ter aberto? Já reconheci a inconveniência da minha curiosidade, já sei tudo isso – as malas não se sentam porque não têm pernas, as malas não falam, a mala é um artefacto não uma entidade com autonomia e vontade, quando é que cresces, quando é que te deixas de bizarrias e passas a viver no mundo das pessoas normais?, fazia-te bem deixares-te dessas merdas que assustam os outros, patati, patata, - já sei isso tudo, e não me interessa. Nem um bocadinho. Por isso abri a mala. Ela falou, eu libertei as minhas mãos da intimidade com a luz do Inverno e, claro!, abri a mala. Se me arrependo? claro que não!
Que desilusão. Nada de especial, mala banal. Fala e é banal. Porra, que desperdício! – foi o que pensei. Um livro de poesia, um livro de haikai todo riscado com desenhos -( o que as pessoas fazem aos livros !) –, um livro das polaroids russas e poemas do Tarkovsky; uma máquina polaroid land camera 100, um pacote de filme fuji, umas chaves atadas a um cordão de cabedal, uma caneta preta, uma lapiseira, dois cds sem capa, algumas fotografias soltas, sementes secas, uma fotografia de três velhinhas a acenar do céu, uns óculos ray-ban, um telemóvel todo partido, uma giboia com aproximadamente 20 metros deformada na zona do abdomén pelo último menino que comeu, um sofá luís XIV bem talhado e forrado com o adamascado que juro ser mais tardio que a estrutura, uma iluminura que se soltou de um livro e goza as liberdades da não subjugação a um suporte e a uma narrativa – é uma letra capital dourada, um A gótico rodeado de rosas silvestres (que abanam com esta corrente de ar) e colibris com patas de cão, uma edição antiga das Metamorfoses de Ovidio em escala pequena, ( dois centímetros, aproximadamente), um embondeiro, um lustre de tamanho médio. Entre outras coisas mais banais ainda.
A única coisa que não percebo é como é que nunca foi roubada.