Mas, na realidade, a origem dessa dor, alheia ao cardápio das maleitas clinicas, era de origem diafana. O reflexo luminoso das pedras preciosas na sua alma, tornavam-na tão luminosa quanto intolerante ao mal do mundo, ao erro, à injustiça. Somente de noite, quando os seus olhos estavam fechados e bem fechados, o menino dos olhos de jade conseguia apaziguar a dor de que padecia a sua alma, alastrada pelo seu corpo. Era então que sonhava. Sonhava com a luz de que era matéria a sua alma. E sonhava com um homem transparente, alado, que lhe estendia a mão enquanto ambos, suspensos no firmamento, se olhavam demoradamente. Quando acordava, o menino de jade chorava. E chorava por não conseguir compreender porque os outros meninos não amavam a delicadeza das palavras, a subtileza do silencio, o desfolhar das copas das árvores, a pureza da sua irmã. Por não conseguir compreender porque os outros meninos lutavam entre si, disparavam tiros de caçadeira contra os cães, apedrejavam os gatos e perseguiam as meninas pequeninas como eles mas inocentes como nunca chegaram a ser, para lhes apalpar os rabos magrinhos e insinuar outros abusos. Olhando o tecto da sua casa, uma pequenina casa, o menino dos olhos de jade chorava. Prometia a si mesmo que se tornaria forte, corajoso tanto e o suficiente, para compreender. Para compreender todas estas coisas, para compreender porque é que todos os dias tinha de rezar, bem ensinado por seu pai, pedindo perdão por essas coisas e outras que não tinha feito e que não compreendia, e pior, por ser o culpado pelo terrivel estado de um homem que apesar de ter nascido milenios antes dele, por sua culpa tinha sido pregado a uma cruz. O menino dos olhos de Jade queria compreender. Estava certo que na noite do dia em que compreendesse conseguiria segurar a mão do homem transparente, no firmamento.
À medida que crescia, a dor do menino dos olhos de Jade aumentava. Pois, os seus olhos, tambem esses se tornavam maiores. No entanto, com o tempo, o menino dos olhos de jade aprendeu a encontravar no conhecimento do mundo, nos conceitos e na filosofia, nas drogas e no amor casual uma subtil máscara - um rosto, que justificava a sua dor.
Mas o reflexo continuava a iluminar-lhe a alma. Com o tempo, deixou também de sonhar com o homem transparente do firmamento, aliás, deixou completamente de sonhar. Somente por vezes, sonhava com pessoas sem rosto, mudas e comprometidas, em conjura para o matar. Não compreendia que um menino que nasce com olhos de jade nao pode assim morrer. Com a idade, desapareceram os sonhos, a sua dor passou a vestir uma máscara, o seu passaporte foi centenas de vezes carimbado. O menino dos olhos de jade, nunca ficava mais do que poucos meses no mesmo sitio, corria o mundo na urgencia de compreender a sua dor, cada vez maior, cada vez mais facetada. Apesar de se ter tornado forte e destemido o menino de jade ainda chorava, no entanto, todas as noites. Sozinho ou quando a seu lado, um corpo abandonado a si mesmo, confirmava que a paixão mais não é que uma máscara para o grande sofrimento. E chorava na praia, para um buraco, gotas espessas de uma matéria vitrea, preciosa. E depois de chorar continuava. Continuava pelo mundo, procurando no rosto de uma virgem sem pecado, a pureza da luz da sua alma. Procurando nas palavras dos outros homens a clareza da luz da sua alma. Procurando na magia a dissolução do contraste da clareza sua alma com as trevas do mundo. Procurando que nas fiadas de linhas consignadas nos volumosos livros que escrevia nervosa e febrilmente, pudesse compreender - e que os outros compreendessem, a intolerancia da alma ao mal. Os seus olhos espelhavam a luz, o seu rosto a dor. A sua expressão, era a de quem não compreende. Porque nem as palavras, nem a virgindade do corpo, nem as letras eram da mesma natureza da clareza da alma.
No ano em que completou a idade de cristo, o menino dos olhos de jade pisou um rio. Num pais distante, dilacerado por guerras e morte, o menino já homem pisou o grande rio cor de jade que atravessa, insólitamente, a mais árida savana. Não és distinto do que ves, a luz e as trevas. Compreender é compreenderes-te. Disse o vento quando este se aproximou do rio. O menino, depois de ter enchido de lagrimas vitreas um buraco na areia escarlate que bordejava o rio, decidiu. Sentado sob nove sois, dez luas, centenas de nuvens, uma árvore e junto ao grande rio mergulhou, imóvel dentro de si mesmo. Quando se levantou, apenas o primeiro orvalho da noite o olhava - as unicas lagrimas que naquelas imediações restavam.
O rio murmurou, cor de jade. Na noite profunda, o menino olhou para baixo e viu o homem transparente. Estendeu-lhe a mão. Ambos flutuavam no firmamento, sobre a superficie do Grande Rio.