domingo, 21 de julho de 2013
(Ensaio para a formulação de uma imagem do desejo barroco)
0.1
spineta violeta gamba e baixo
um violino e um menino
tudo bem aprumado
arrumado
buxo com linha de recorte determinado
banquete de animais, perucas e sinais
brocados, lustres e chão
tocados e empoeirados
numa secreta composição:
Senhorita em seda dourado-solar
Cavalheiro em veludo azul-lunar
pisam a linha desenhada no silêncio estrelado
desafiando a proximidade, a lado a lado.
0.2.
Lado-a-lado se dá começo
ao movimento de dançar
ritmado sem tropeço pressa ou arremesso
mas pele jasmim, pérolas sonoras e mergulhar
passo por passo
na densidade de tocar.
0.3.
Minuete do mergulho em corpo tocado
violino cravo tecto perspectivado
bailam os putti nas fontes e pavões nas pontes:
o Tratado do Olhar é o que vai começar
vector de
profundidade adivinhada desejosa e desvelada
sussura-se um segredo - és tu, mas não digas nada.
0.4.
Teatro mundi não é só as
aparências e conviniências
saber escolher é saber bailar
o passo certo sem hesitar
pobres bailantes esforçados
tentando passos por elegância acabados
Cavalheiro de azul e Senhorita de ouro
vitimas sem decouro
das setas do actor-convidado
criança louca de capricho desregrado
esse cupido malogrado .
0.5
corações feridos sob os folhos a sangrar
pingam gotas de prata e contas de strass a brilhar
preciosos objectos se formam em surpresa
são a luz da alma que enforma amor em certeza
Lancem as lanternas desdobrem os cenários
cisnes brancos rolas e canários
frescos sobre estuque e cenas de caçadores
vai-se encenar a vida e seus amores
Deus ficou para trás na circunfrência e no plano
agora é tempo de elipse e do prazer mundano
nisto esquecidos ficam os bailantes
ali de lado, amantes:
é que nada podem ver senão o ouro brocado
do seu coração tocado.
0.6
Toca trompeta e cala-se a espineta
resta aos amantes bailantes aguardar
ver de seus olhos o Mundo se desdobrar
mas o ouro é perene e o amor solene
trama teia passo meninos de escolta
uma janela que bate com a ventania solta
inesperados são os encontros e seu ser
pé de cetim e boca de carmim
mistério da vida e do desejo
alquimia e arte de manejo
poemas cantados pela sabedoria
na métrica de entrega e devoção, dia a dia.
0.7
pinga a parafina dos castiçais
enroscam-se os cães, as pulgas e os outros animais
há que abrandar pois a festa terá que durar
ouvindo-se o menestrel recitando
rimas que aprendeu brincando
servem-se iguarias empoeiradas e frutas adoçadas
a suspensão,
tempo parado do fruto cristalizado
vanitas de toda paixão,
luz que dança no linho grosso desdobrado.
0.8
a noite cresceu alta azul estrelar
entrou um alaúde e um belo castrati para cantar
vêm de trajes bem vincados e laços apertados
das terras de gales com música do Renascimento
saltam as cordas no gesto abraço do instrumento
afina-se em trinado a voz e no tórax o movimento
I saw my lady weep é a canção de Dowland
on your heart lies my hand water flows on golden sand
em elegante sequência segue-se o afrancesado Purcell
balançam as barcaças e as lanternas de papel.
0.9
(depois de Purcell)
sussurros galanteios e passeios pelo roseiral
pétalas vermelha servidas em taças de cristal
flutuantes nas fontes por velas iluminadas
frescura linhas de luz e transparências perfumadas
servem para ver e degustar:
pega-las com a ponta dos dedos para não as amachucar;
superficie de veludo e paladar agudo
arriscado e subtil prazer, metáfora da arte de desejar
exercer pela justa medida: há o risco de envenenar.
1.0
os pares de mãos enlaçadas começam nova coreografia
bailam as damas vendadas antes que chegue o dia
são passos e voltas delicadas em suspiro rematadas
o odor do ananás dos figos das laranjas de um grande cabaz
os rosto opaco do homem no canapé escorre já uma linha de rapé
beberica-se licor e vinho quente com canela e cravinho
doce suave como o fogo que crepita o azinho.
1.1.
rendas debruam os decotes dos bustos e saiotes
as sedas de marajá e os remates de táfetá
tudo fica por adivinhar no jogo de somente algo mostrar
saiam os convidados vão ver o céu a chover
artes do oriente e terras de nascente
petardos galhardos explosões
luzes em flor bouquets fugazes ilusões.
1.2.
na cadência suada da madrugada
do orvalho que tudo cobre em ornamento nobre
calou-se até a catatua cinza vermelha
tagarela
um pinto de faiança (italiana) sai de uma omelete
amarela
louças pratos talheres e pratas em desalinho
levados pelo criado
num chiante carrinho
e os convivas recolhem aos recantos
aprenciando a alvorada e os seus encantos
cadeiras coxins banquetas e baloicos de jardim
sob a vinha e o ébrio doce jasmim
num silêncio que tudo envolve
e assim depois da folia movimento cada um a si
se devolve.
1.3.
em vidros grossos cheios de agua transparente
vogam lentas as folhas
de verde adstringente
no topo as pétalas rosadas encarnadas sangrando
sem dor nem mando
abrem a intimidade da flor a um mundo
nem um primeiro nem o segundo
mas como chá que se verte quente sobre o vidrado
a aquele único que é o amado.
1.4
um burburinho pequeno alastra pelos salões
é hora de conversar, dizer e contar
as estórias que ficarão canções
fala-se do pintor que morreu seco queimado
na areia da praia
deitado
pintor do claro escuro gritante
cuja pintura chocou todos de tão pujante
o escandalo dos escorsos arrojados e dos temas nunca pintados
na catedral da cidade está um seu S. Sebastião trespassado
setas por todo o corpo e à coluna atado
preso nela como um louco cão
como a um feitiço os enamorados estão.
na cadência suada da madrugada
do orvalho que tudo cobre em ornamento nobre
calou-se até a catatua cinza vermelha
tagarela
um pinto de faiança (italiana) sai de uma omelete
amarela
louças pratos talheres e pratas em desalinho
levados pelo criado
num chiante carrinho
e os convivas recolhem aos recantos
aprenciando a alvorada e os seus encantos
cadeiras coxins banquetas e baloicos de jardim
sob a vinha e o ébrio doce jasmim
num silêncio que tudo envolve
e assim depois da folia movimento cada um a si
se devolve.
1.5
cão bichon malhado de corpo curto
espalmado
um em louça outro na mesa atrelado
olham o Mundo com seus olhos lacrimejantes
há incenso pó e chuva de papeis brilhantes
nada há neste para compreender ou saber
ou
é o homem homem como o cão é cão?
pergunta o cavalheiro sentado enquanto por mãos pálidas afagado,
ninguem ousa responder a sua provocação
senão senhora de dourado,
a seu lado:
como o saber mediante a crueldade da civilização?
1.6.1
(as duas árvores do éden)
Perdoe-nos vossa senhoria menina de dourado
que terá para dizer ?
sois apenas coqueluche de ver deleitoso objecto de prazer
responde o homem já babado: e recorde o edén e seu pecado!
ho, responde menina, perdoai-me em minha ousadia
lá estive sim e recordo que escolhi o fruto da árvore da sabedoria
entre esta e a eternidade não há como hesitar
e por isso a esse Éden jamais alguém quiz voltar
desafio-o agora para que inicie -
meu senhor de emperucada
calvicie,
uma nova interrogação
porque sonha o homem com a árvore que lá deixou
esquecendo a sabedoria do coração?
1.6.2.
como dialogar com mulher que se aventura?
quer cair em desgraça e não haverá homem que a segura
nesse Éden
fui enganado e no desejo como pardal enjaulado -
ainda tenho o pedaço da maçã na garganta entalado!
por isso não terei resposta:
ainda a sabedoria não rolou por esta encosta
(responde o convidado apontando o ventre
engomado)
iluminem mais velas as lanternas e os cristais
desponta a madrugada e é preciso dançar mais
e senhorita de dourado não se entristeça
a festa trará as respostas ainda antes que amanheça.
1.6.3
Na sala dos espelhos tudo se vê tudo se reflete
desdobramento maravilhamento e nada se repete
revelam os espelhos o visivel geometral
conduzindo a luz viajante ao seu encontro final
cara senhoria menina de ouro
se mo permite fazer terei algo a dizer
julgo que a posso ajudar para sua questão desvelar
diz sóbrio cavalheiro de veludo
até então
mudo
(mas teremos que bailar para que eu o sussurrar)
chão rebatido que foi papel desenhado e riscado
em ensaio do que é bailado
observe os espelhos enquanto bailamos
devolvem-nos nossos movimentos e por isso não paramos
são como a vida, o Mundo como plano de inscrição
daí uma pista para sua questão da civilização.
1.7
Digo-te ainda querida um segredo
para que não tenhas esse outro medo
que sinto no esquivo do teu olhar
e no sorriso timido que deixas dançar
o temor de perder
aquilo que juntos descobrimos já ter;
por isso colhi dois pés de alfazema perfumada
para quando te digo minha querida
saibas que digo minha amada
em cada passo dado e instante dançado
sentirás nas dobras do algodão que te cobre
em folha água terra raiz odor
o que o amor
tem de mais nobre:
o Ouro em Azul, flora do Éden, enlace bailado ainda antes
de ter começado.
1.8
fidam os pavios de algodão trazido
nos
cascos bascos dos navios
sobe o fumo perfumado da cera temperada
com pigmentos minerais e essência limonada
sabeis porque se rasga no céu cobalto
essa nuvem pincelada dourada alto?
é a presença do inacabado movimento repetição
fazendo-nos testemunha no seu Ver
do que irá acontecer,
ora observem bem nossa festa encenação
apita o ilustre marreco cicerone chamando à atenção
foi ele - o italiano napolitano
Bernini da Teresa d'Àvila e sua paixão
que nos conduziu por seu plano torso luz sombra
pathos e ilusão,
será agora o momento de saber, se é que teremos esse poder
como a vida celebrar depois da festa terminar
na potência dos segredos partilhados e amores semeados
a rota de Vénus sobre o Luar.
1.8.
Digo-te ainda querida um segredo
para que não tenhas esse outro medo
que sinto no esquivo do teu olhar
e no sorriso timido que deixas dançar
o temor de perder
aquilo que juntos descobrimos já ter;
por isso colhi dois pés de alfazema perfumada
para quando te digo minha querida
saibas que digo minha amada
em cada passo dado e instante dançado
sentirás nas dobras do algodão que te cobre
em folha água terra raiz odor
o que o amor
tem de mais nobre:
o Ouro em Azul, flora do Éden, enlace bailado ainda antes
de ter começado.
1.9.
ouço já os estalos
das correntes freios e cascos dos cavalos
esperando para lá da porta entreaberta
onde se rasgam feixes de luz na relva descoberta
vibrato luminoso em áreas foscas e nos focinhos
moscas
vejo as baforadas de ar quente saindo das narinas
envolvendo o lustre penteado das crinas
e tudo isto que se desenrola para lá da nossa vontade
como o céu que se erge em cada tempestade
magestoso alto e imenso
contornado pesado supera tudo o que penso
Ainda se ouve a música no salão
sente-se o odor fresco do novo pão
que o fogo do forno ardeu e cozeu
para mim, hoje, novo Adão.
1.9.1
mas demoram-se ainda senhoras
sentadas nas almofadas mouras
mostram sua mão branca à cigana cartomante
de rosto suado e brilhante sob o adamascado turbante
cartas conchas seixos e a bola de cristal
sob o pano peludo de veludo
tecido no sisal
por ali passam as vidas de linha a linha
monte lunar mar solar vida amor e a morte
enredados na teia-trama da sorte
dar o passo certo
é deixar o coração aberto
é nos dois livros que deve ler:
O de-si-mesmo e o do Mundo-a-viver
que encontrará tudo o que precisa saber
é o que a bola diz,
Senhora de Ouro amante aprendiz.
1.9.2.
Rasante a luz atravessa todas as frestas
portas, angulos rectos e arestas
a madugada dourada cresce em corrida
empurrando celebrantes e outros ajudantes
para a saída
em redondo despedir os que vão partir
fazem seus rebuscados cumprimentos
e agradecimentos
ao ilustre cicerone esposa e amantes
- rosados alegres cansados abraçados -
no fraterno calor dos vinhos e dos espumantes;
e cavalheiro de veludo azul olhando seu sapato
espera dama de ouro discreto e sem aparato -
há palavras a trocar sem promessas por cumprir
o destino é o da partida e da vida que se vai seguir
- mãos que se tocam em suave gentileza
estou aqui senhor para que lhe diga de minha certeza:
é da ordem da sabedoria aquilo que partilhamos
dançado mergulhado tocado e olhado :
somos um mesmo acorde e assim bailamos
- neste e nos entre-mundos - sempre que desejamos
é a alegria do ser e do encontro que dita o fazer correcto
celebrando a vida nos laços
do afecto
e no mundo que no amor se desdobra
sem sobra
ficarei a aguardar
um qualquer outro onde seremos, de novo
Um-par.
2 .
crescem agora as nuvens da poeira
e os gatos malhados esticados na soleira
como as gotas pingadas alinhavadas nas ramagens agitadas
do orvalho sémen da alquimia
fecundando em luz e transparência o novo dia
zumbem já as abelhas e escaravelhos gritam as andorinhas
agitando o céu no azul das libelinhas
dança nascida do fogo do Universo
continuada e amada
após a última letra - o ó - deste verso.
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