domingo, 21 de julho de 2013

(Ensaio para a formulação de uma imagem do desejo barroco) 0.1 spineta violeta gamba e baixo um violino e um menino tudo bem aprumado arrumado buxo com linha de recorte determinado banquete de animais, perucas e sinais brocados, lustres e chão tocados e empoeirados numa secreta composição: Senhorita em seda dourado-solar Cavalheiro em veludo azul-lunar pisam a linha desenhada no silêncio estrelado desafiando a proximidade, a lado a lado. 0.2. Lado-a-lado se dá começo ao movimento de dançar ritmado sem tropeço pressa ou arremesso mas pele jasmim, pérolas sonoras e mergulhar passo por passo na densidade de tocar. 0.3. Minuete do mergulho em corpo tocado violino cravo tecto perspectivado bailam os putti nas fontes e pavões nas pontes: o Tratado do Olhar é o que vai começar vector de profundidade adivinhada desejosa e desvelada sussura-se um segredo - és tu, mas não digas nada. 0.4. Teatro mundi não é só as aparências e conviniências saber escolher é saber bailar o passo certo sem hesitar pobres bailantes esforçados tentando passos por elegância acabados Cavalheiro de azul e Senhorita de ouro vitimas sem decouro das setas do actor-convidado criança louca de capricho desregrado esse cupido malogrado . 0.5 corações feridos sob os folhos a sangrar pingam gotas de prata e contas de strass a brilhar preciosos objectos se formam em surpresa são a luz da alma que enforma amor em certeza Lancem as lanternas desdobrem os cenários cisnes brancos rolas e canários frescos sobre estuque e cenas de caçadores vai-se encenar a vida e seus amores Deus ficou para trás na circunfrência e no plano agora é tempo de elipse e do prazer mundano nisto esquecidos ficam os bailantes ali de lado, amantes: é que nada podem ver senão o ouro brocado do seu coração tocado. 0.6 Toca trompeta e cala-se a espineta resta aos amantes bailantes aguardar ver de seus olhos o Mundo se desdobrar mas o ouro é perene e o amor solene trama teia passo meninos de escolta uma janela que bate com a ventania solta inesperados são os encontros e seu ser pé de cetim e boca de carmim mistério da vida e do desejo alquimia e arte de manejo poemas cantados pela sabedoria na métrica de entrega e devoção, dia a dia. 0.7 pinga a parafina dos castiçais enroscam-se os cães, as pulgas e os outros animais há que abrandar pois a festa terá que durar ouvindo-se o menestrel recitando rimas que aprendeu brincando servem-se iguarias empoeiradas e frutas adoçadas a suspensão, tempo parado do fruto cristalizado vanitas de toda paixão, luz que dança no linho grosso desdobrado. 0.8 a noite cresceu alta azul estrelar entrou um alaúde e um belo castrati para cantar vêm de trajes bem vincados e laços apertados das terras de gales com música do Renascimento saltam as cordas no gesto abraço do instrumento afina-se em trinado a voz e no tórax o movimento I saw my lady weep é a canção de Dowland on your heart lies my hand water flows on golden sand em elegante sequência segue-se o afrancesado Purcell balançam as barcaças e as lanternas de papel. 0.9 (depois de Purcell) sussurros galanteios e passeios pelo roseiral pétalas vermelha servidas em taças de cristal flutuantes nas fontes por velas iluminadas frescura linhas de luz e transparências perfumadas servem para ver e degustar: pega-las com a ponta dos dedos para não as amachucar; superficie de veludo e paladar agudo arriscado e subtil prazer, metáfora da arte de desejar exercer pela justa medida: há o risco de envenenar. 1.0 os pares de mãos enlaçadas começam nova coreografia bailam as damas vendadas antes que chegue o dia são passos e voltas delicadas em suspiro rematadas o odor do ananás dos figos das laranjas de um grande cabaz os rosto opaco do homem no canapé escorre já uma linha de rapé beberica-se licor e vinho quente com canela e cravinho doce suave como o fogo que crepita o azinho. 1.1. rendas debruam os decotes dos bustos e saiotes as sedas de marajá e os remates de táfetá tudo fica por adivinhar no jogo de somente algo mostrar saiam os convidados vão ver o céu a chover artes do oriente e terras de nascente petardos galhardos explosões luzes em flor bouquets fugazes ilusões. 1.2. na cadência suada da madrugada do orvalho que tudo cobre em ornamento nobre calou-se até a catatua cinza vermelha tagarela um pinto de faiança (italiana) sai de uma omelete amarela louças pratos talheres e pratas em desalinho levados pelo criado num chiante carrinho e os convivas recolhem aos recantos aprenciando a alvorada e os seus encantos cadeiras coxins banquetas e baloicos de jardim sob a vinha e o ébrio doce jasmim num silêncio que tudo envolve e assim depois da folia movimento cada um a si se devolve. 1.3. em vidros grossos cheios de agua transparente vogam lentas as folhas de verde adstringente no topo as pétalas rosadas encarnadas sangrando sem dor nem mando abrem a intimidade da flor a um mundo nem um primeiro nem o segundo mas como chá que se verte quente sobre o vidrado a aquele único que é o amado. 1.4 um burburinho pequeno alastra pelos salões é hora de conversar, dizer e contar as estórias que ficarão canções fala-se do pintor que morreu seco queimado na areia da praia deitado pintor do claro escuro gritante cuja pintura chocou todos de tão pujante o escandalo dos escorsos arrojados e dos temas nunca pintados na catedral da cidade está um seu S. Sebastião trespassado setas por todo o corpo e à coluna atado preso nela como um louco cão como a um feitiço os enamorados estão. na cadência suada da madrugada do orvalho que tudo cobre em ornamento nobre calou-se até a catatua cinza vermelha tagarela um pinto de faiança (italiana) sai de uma omelete amarela louças pratos talheres e pratas em desalinho levados pelo criado num chiante carrinho e os convivas recolhem aos recantos aprenciando a alvorada e os seus encantos cadeiras coxins banquetas e baloicos de jardim sob a vinha e o ébrio doce jasmim num silêncio que tudo envolve e assim depois da folia movimento cada um a si se devolve. 1.5 cão bichon malhado de corpo curto espalmado um em louça outro na mesa atrelado olham o Mundo com seus olhos lacrimejantes há incenso pó e chuva de papeis brilhantes nada há neste para compreender ou saber ou é o homem homem como o cão é cão? pergunta o cavalheiro sentado enquanto por mãos pálidas afagado, ninguem ousa responder a sua provocação senão senhora de dourado, a seu lado: como o saber mediante a crueldade da civilização? 1.6.1 (as duas árvores do éden) Perdoe-nos vossa senhoria menina de dourado que terá para dizer ? sois apenas coqueluche de ver deleitoso objecto de prazer responde o homem já babado: e recorde o edén e seu pecado! ho, responde menina, perdoai-me em minha ousadia lá estive sim e recordo que escolhi o fruto da árvore da sabedoria entre esta e a eternidade não há como hesitar e por isso a esse Éden jamais alguém quiz voltar desafio-o agora para que inicie - meu senhor de emperucada calvicie, uma nova interrogação porque sonha o homem com a árvore que lá deixou esquecendo a sabedoria do coração? 1.6.2. como dialogar com mulher que se aventura? quer cair em desgraça e não haverá homem que a segura nesse Éden fui enganado e no desejo como pardal enjaulado - ainda tenho o pedaço da maçã na garganta entalado! por isso não terei resposta: ainda a sabedoria não rolou por esta encosta (responde o convidado apontando o ventre engomado) iluminem mais velas as lanternas e os cristais desponta a madrugada e é preciso dançar mais e senhorita de dourado não se entristeça a festa trará as respostas ainda antes que amanheça. 1.6.3 Na sala dos espelhos tudo se vê tudo se reflete desdobramento maravilhamento e nada se repete revelam os espelhos o visivel geometral conduzindo a luz viajante ao seu encontro final cara senhoria menina de ouro se mo permite fazer terei algo a dizer julgo que a posso ajudar para sua questão desvelar diz sóbrio cavalheiro de veludo até então mudo (mas teremos que bailar para que eu o sussurrar) chão rebatido que foi papel desenhado e riscado em ensaio do que é bailado observe os espelhos enquanto bailamos devolvem-nos nossos movimentos e por isso não paramos são como a vida, o Mundo como plano de inscrição daí uma pista para sua questão da civilização. 1.7 Digo-te ainda querida um segredo para que não tenhas esse outro medo que sinto no esquivo do teu olhar e no sorriso timido que deixas dançar o temor de perder aquilo que juntos descobrimos já ter; por isso colhi dois pés de alfazema perfumada para quando te digo minha querida saibas que digo minha amada em cada passo dado e instante dançado sentirás nas dobras do algodão que te cobre em folha água terra raiz odor o que o amor tem de mais nobre: o Ouro em Azul, flora do Éden, enlace bailado ainda antes de ter começado. 1.8 fidam os pavios de algodão trazido nos cascos bascos dos navios sobe o fumo perfumado da cera temperada com pigmentos minerais e essência limonada sabeis porque se rasga no céu cobalto essa nuvem pincelada dourada alto? é a presença do inacabado movimento repetição fazendo-nos testemunha no seu Ver do que irá acontecer, ora observem bem nossa festa encenação apita o ilustre marreco cicerone chamando à atenção foi ele - o italiano napolitano Bernini da Teresa d'Àvila e sua paixão que nos conduziu por seu plano torso luz sombra pathos e ilusão, será agora o momento de saber, se é que teremos esse poder como a vida celebrar depois da festa terminar na potência dos segredos partilhados e amores semeados a rota de Vénus sobre o Luar. 1.8. Digo-te ainda querida um segredo para que não tenhas esse outro medo que sinto no esquivo do teu olhar e no sorriso timido que deixas dançar o temor de perder aquilo que juntos descobrimos já ter; por isso colhi dois pés de alfazema perfumada para quando te digo minha querida saibas que digo minha amada em cada passo dado e instante dançado sentirás nas dobras do algodão que te cobre em folha água terra raiz odor o que o amor tem de mais nobre: o Ouro em Azul, flora do Éden, enlace bailado ainda antes de ter começado. 1.9. ouço já os estalos das correntes freios e cascos dos cavalos esperando para lá da porta entreaberta onde se rasgam feixes de luz na relva descoberta vibrato luminoso em áreas foscas e nos focinhos moscas vejo as baforadas de ar quente saindo das narinas envolvendo o lustre penteado das crinas e tudo isto que se desenrola para lá da nossa vontade como o céu que se erge em cada tempestade magestoso alto e imenso contornado pesado supera tudo o que penso Ainda se ouve a música no salão sente-se o odor fresco do novo pão que o fogo do forno ardeu e cozeu para mim, hoje, novo Adão. 1.9.1 mas demoram-se ainda senhoras sentadas nas almofadas mouras mostram sua mão branca à cigana cartomante de rosto suado e brilhante sob o adamascado turbante cartas conchas seixos e a bola de cristal sob o pano peludo de veludo tecido no sisal por ali passam as vidas de linha a linha monte lunar mar solar vida amor e a morte enredados na teia-trama da sorte dar o passo certo é deixar o coração aberto é nos dois livros que deve ler: O de-si-mesmo e o do Mundo-a-viver que encontrará tudo o que precisa saber é o que a bola diz, Senhora de Ouro amante aprendiz. 1.9.2. Rasante a luz atravessa todas as frestas portas, angulos rectos e arestas a madugada dourada cresce em corrida empurrando celebrantes e outros ajudantes para a saída em redondo despedir os que vão partir fazem seus rebuscados cumprimentos e agradecimentos ao ilustre cicerone esposa e amantes - rosados alegres cansados abraçados - no fraterno calor dos vinhos e dos espumantes; e cavalheiro de veludo azul olhando seu sapato espera dama de ouro discreto e sem aparato - há palavras a trocar sem promessas por cumprir o destino é o da partida e da vida que se vai seguir - mãos que se tocam em suave gentileza estou aqui senhor para que lhe diga de minha certeza: é da ordem da sabedoria aquilo que partilhamos dançado mergulhado tocado e olhado : somos um mesmo acorde e assim bailamos - neste e nos entre-mundos - sempre que desejamos é a alegria do ser e do encontro que dita o fazer correcto celebrando a vida nos laços do afecto e no mundo que no amor se desdobra sem sobra ficarei a aguardar um qualquer outro onde seremos, de novo Um-par. 2 . crescem agora as nuvens da poeira e os gatos malhados esticados na soleira como as gotas pingadas alinhavadas nas ramagens agitadas do orvalho sémen da alquimia fecundando em luz e transparência o novo dia zumbem já as abelhas e escaravelhos gritam as andorinhas agitando o céu no azul das libelinhas dança nascida do fogo do Universo continuada e amada após a última letra - o ó - deste verso.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

a lagosta saltou do prato em seus sapatinhos de verniz, entoou o sol menor, olhou-me e disse, é isto que se diz!

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

observo cuidadosamente a superficie do ser
pétala, teia ou casca rugosa sem intenção ou ficção imperiosa
como distantes estão de mim sendo eu parte de vós
nesta demanda necessária à gente curiosa

tenho um bule preto, vidrado como um céu de uma noite de verão. Encontrado entre coisas mil, sem sentido ou destino, o bule preto japonês esperou por mim numa dessas feiras dos dias quando o dia da semana diz em seu nome não haver já feira. Acompanha-me nas minhas leituras, no silêncio dos meus pensamentos, nas tardes de um outono que se anuncia na luz que escorre pálida, pelos muros do final da tarde. Perfumado, exala lugares de todos estes mundos sonhados em postais ilustrados, partilhando na intimidade do calor o segredo das folhas que dentro de si vê abrir.
A primeira vez que o usei, negando-me lavar do seu interior a sua história, descobri singular surpresa. Um seixo de praia tão negro quanto o bule, rolou ao sabor da água fervente vertida.pude vê-lo sob a superficie opalina da água, lá no fundo. Nesse fundo do bule, no interior onde abrem as flores, estão duas linhas cruzadas. essas que contam histórias a quem sabe ler os seixos, essas que se desenham na palma das nossas mãos quando o tempo nos revela o destino.Ou essas que desenham em marca o tempo das nossas expressões: depois do esgar da morte, todos os rostos regressam à sua expressão - aquela que corresponde à topografia das rugas. Nunca tirei o seixo do fundo bule.
Julgo que as linhas brancas são as suas nervuras, desenhadas em cruzado.veios, rasgos, ramos, veias, rios, desenho, traços riscados, cicatriz. Nunca o saberei. Sei somente que cada vez que observo o fundo nocturno do meu bule, vejo um céu sem fim, chumbado a azul e cortado por nuvens: vejo o singular o instante dos encontros, quando numa outra profundidade se manifesta a nossa.

sábado, 10 de setembro de 2011

noites pelas manhãs dias sem fim fiadas de estrelas
o meu corpo sem mim
onde encontrar o silêncio doçura rio navegável
nessas ideias
das noites sem sono perguntas respostas sem lugar confortavel?

no deslumbre da ideia

recortadas as silhuetas
das árvores

o azul
pantone

feérica a noite testemunha
a cumplicidade das Ideias.

quem disse que não eram importantes?

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Como nefelibata que é percorre dois mundos: por cima e por baixo das nuvens.
Certo é que sua perspectiva impede-o de partilhar, desinteressada e levianamente a realidade com os demais, habituados à perspectiva terrena, desapaixonada das alturas, limitada sempre num algures por um obstaculo erguido. Nas cordenadas terrenas, a lógica é ritmada pela cadência dupla do passo, da norma aprendida, do dois, um ou outro e algures algo que dificulta a progressão. Foi por isso, vendo sobre as nuvens, na partilha do ceu sem fim, que seu coração conquistou uma outra cordenada, singular. Aquela que partilham todos os que se permitem nela incorrer, ou aos quais a Natureza agraciou com a arte do voo: a da leveza dos sonhos.

domingo, 4 de setembro de 2011




das imagens que organizam, reunindo a dispersão na união
encontros, lugares

quadros sonhados realizados, actualizados
tempo,lugares

de um fluxo outro,imagens guardadas, agora dadas, largadas
devolvendo-nos a nós mesmos, ao centro. alegria.

sábado, 3 de setembro de 2011

na manhã das nuvens altas,
depois da tempestade
novas folhagens nascem. mesmo nos arbustos já secos.

doí-me a alma no corpo todo.


Praia sonhada bem amada
Do areal sem fim
Cresce ondas, no mar mansinho
Nuvens, dunas, sombras
Dentro e fora de mim.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

sobre o manto cobre que recorta as silhuetas da tarde uma densidade efectiva condensa o segredo de todas as coisas. Na luz que encontra um caminho pelos nossos corações, sussurrando que a alegria de sermos em cada encontro de nós noutro, não é nada senão o avesso da dúvida.cumprimos o nosso destino.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

da circularidade do tempo

de todos os que me faltam neste corpo
que o foram sem o agora ser
e de todos o que encontro nesta constante saudade
daquilo que ainda não aconteceu
de todos os instantes que vivemos e dos quais
saudosos esperamos para
neles poder ser
inteiros.

sombra dos dias

numa sala branca sem janelas uma janela de luz recorta o chão. sobre esta, o meu corpo nao tem sombra.

1.recito os aikai de cor.

não esqueças nunca
o gosto solitário
do orvalho.

contra os meus passos
a lua
sorriu.

suave
a manhã mergulha
dentro de si.


2.a sombra dos dias projecta-se sobre o chão, no seu recorte vejo a evidência, tudo o que não se quer ver, porque não se pode, mas o que e deixou, na sua magnificiencia, escapar. somente a luz a conseque delimitar.

essa sombra dos dias em que a eviÊncia deixamos escapar.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

o sem coração

Presença, imanência, consciência, Natureza, corporeidade, sensibilidade.
E nesse dia em que o vazio se mostrou como evidência, o homem sem coração não pode chorar. Nada na lógica clara da racionalidade lhe indicava que não ter coração merecesse uma lágrima. talvez sim, pudesse ter merecido se essa ausência implicasse a perda de algum proveito, algo que objectivamente se pudesse equacionar como desvalorizante económicamente,mau para a saúde, capaz de trazer problemas com a lei no futuro, enfim. Nada disso estava em presença, a culpa não era sua e por consequência o que se mostrou óbvio foi rir.
Presença, Imanência, Consciência, Natureza, corporeidade, sensibilidade, intensidade, selvagem. Nunca deixem o meu coração.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

o meu corpo que se prolonga nas escamas reluzentes desse peixe que se escapa pela minha coluna vertebral. vejo-o solto de mim nas manhãs em que sonho o tempo que ainda não foi com a saudade daquilo que está para acontecer.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

três passos estalam a superficie amarela das folhas de ginko tapeteando o caminho. para trás ficam os dias do silêncio, em que na solidão de se ser menos do que nos mesmos, nos esquecemos do tudo quando Deus nos preencheu.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

a luz da manhã

do seu ventre branco uma mulher retira uma raiz. no acto continuo a raiz adensa-se em ramo de laranjeira carregando papoilas em flor, agapantos, flores de laranjeira e folhagem carnuda cinzenta. São lindissimas as mãos vividas desta mulher. O ramo é dividido. Contra uma janela, no interior luminoso de um parapeito, cada uma das partes é colocada em distintos jarros transparentes.

A silhueta do ramos

recorta

a luz da manhã.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

terça-feira, 18 de agosto de 2009

A cauda do cometa

Em Amares, de onde é o performer que cozinha para o seu público que assim passa a ser conviva e parte do ritual, existe uma biblioteca. Nessa biblioteca, escondida e perdida, uma fiada de livros de lombada verde e data de edição ilegível, versa sobre o assunto dos vestígios de matéria estrelar, e coisas afins, no planeta Terra. Às longas horas que dediquei a esses livros, em estudo acurado e tempo dedicado, corresponderam dias de Inverno, solitários nas copas despidas e musicais no encontro da chuva com as janelas. Dias tão frios quanto escuros, dias que repousam na memória do mesmo modo que o feixe amarelo-torrado do candeeiro de pé que me serviu de companhia, se deitou por longas horas sobre as letras dos livros da lombada verde. Para além das exaustivas descrições e relações químicas entre metais e outros elementos, a sua datação e catalogação, a Colecção dedicou alguns exemplares às Origens e Manifestações, entre o tomo V e VII. O Capitulo, II do tomo V, é aberto com notável uma gravura datada de 1610, assinada VM. Nesta singular imagem, um conjunto de árvores açoitadas pelo vento, presenciam a chegada de um cometa, de grande cauda, rasgando o céu. Nas longas horas que dediquei à observação desta rara imagem, percebi que o mapa celeste desenhava um dia, uma hora e uma localização geográfica precisa. Que as árvores, desenhadas com a perícia de um Vandelli, eram retratos e que à direcção do vento, de norte para sul, correspondia uma progressiva claridade. Na singularidade, por vezes bastante aborrecida, do modo como a Colecção se organizava, somente consegui encontrar a justificação para a gravura no último capitulo do tomo VII. Nos capítulos que os mediaram, aprendi sobre a relação entre as árvores e o vento, entre os minerais cósmicos presentes no solo e a floração na primavera, entre a beleza das copas e a profundidade das raízes. Assim, chegada ao derradeiro capitulo XVI do tomo VII, estava preparada para compreender a gravura de traço holandês e data setecentista. Neste, refere-se que ilustra um famoso conto vernáculo de acordo com o qual, num dia preciso do mês de Fevereiro o vento claro, chamado vento branco, brandiu sem piedade sobre toda a terra. Na sua origem desconhecida o conto passou de boca em boca até à sua compilação pelo editor anónimo da colecção de lombada verde. Nas tardes em que deixei descansar a biblioteca, questionei várias pessoas sobre a gravura e o seu significado. Mais tarde, sobre o conto. Ninguem destes se recordava e a única referência que consegui apontou para uma laje coberta de musgo, servindo de pedra de fecho ao arco da sacristia e onde se via uma figura feminina, sob a cabeça da qual pairava uma estrela. Na inocente alegria da confirmação, encontrei nesta um testemunho de que a data da gravura poderia ser verdadeira e de que o conto não seria o resultado da imaginação cavalgante do editor. O conto, tal como a lage, referem uma mulher, uma figura feminina que congrega no seu corpo a materizalização das relações entre todos os elementos, entre todos os vestígios estrelares e a vida na terra. Assim, no dia em que a constelação de Sagitário deu lugar à constelação de Aquário, um vento quente, raríssimo nos Invernos do hemisfério Norte e pela sua orientação, fez dançar todas as árvores, e numa coreografia de tal modo ritmada, que do som resultante da deslocação do ar por entre os ramos se compôs um enigmático verso: Depois de ter chegado ela mesma se vai esquecer/ que sendo uma deusa, viverá para compreender/e somente quem me ouvir/poderá na madeixa do seu cabelo de noite/a cauda do cometa descobrir. O tomo VIII e VIII fecham a colecção com um apanhado de outros contos, nenhum deles ilustrado. Não compreendo porquê.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

curta#4

numa querela de sentido, um argumento tenta subjugar o outro. Face a face, faiscam e movimentam ar. Na vitória, o argumento ficou só. Solidão do sentido.

curta#3

duas palavras disputam a velocidade da compreensão, desafiando na atmosfera toda a velocidade. esqueceram-se que são somente palavras, jamais compreensão. A dualidade.

curta#2

O reflexo solta-se do seu suporte, corre em direcção a outro e numa intoleravel velocidade cola-se-lhe sem pudor. O domínio.

curta#1

entre as duas portas recortadas na parede forrada a flores, verticaliza-se uma enorme racha, direita, negra. Por uma força irresistivel o meu corpo é sugado pela finissima e direita racha, saindo de seguida, por cada um das portas, em passo coloquial. As dúvidas, a dúvida.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

.


do silencio das tuas palavras penso o tempo da tua ausencia. Da falta de ser contigo eu mesma.
Depois do encontro, jamais seremos inteiros sós.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

voltei hoje

num desses dias banais em que a cidade se veste de pó e calor, atravessei a praça quente para cumprir um encontro. Da ultima vez que ali tinha estado, sentado na paragem do autocarro, analisara todas as fachadas com cuidado e minucia e posso garantir, no rescaldo dessas investigações, que aquilo com que me vou hoje encontrar, lá não estava. A Relojoaria Maravilhas tem, como outros locais das nossas vidas, a particularidade de existir quando dela necessitamos. E, a verdade é que depois de longa arqueologia dos sentimentos e dos factos, admiti que não sou hoje quem desejaria ser. Nesse dia poeirento, quente porque vestido de Verão, vi a montra da Relojoaria Maravilhas. Fechada desde longa data, ninguem se recorda já quem foi o seu dono, ou o seu último cliente. O correio, amontoado em pirâmide incerta, do outro lado da porta, indiciava as longas décadas que haviam corrido desde o fecho mas, curiosamente, sob um véu de pó, um despertador digital, no canto superior esquerdo da montra piscava: c r e t i n o v o l t a a m a n h ã .

quinta-feira, 18 de junho de 2009

trans-onirico acidental

A cidade voga sob os nossos pés, relectida numa imensa superficie quente. Entre o fumo dos cigarros que se desenha em curvas sinuosas, todas as palavras confirmam os antigos encontros. De dia, jogo o jogo desta enorme ilusão consensual, de noite, encontro-nos a todos, nos bastidores das nossas vidas já vividas, do tempo que nunca aconteceu, de tudo que já teve lugar na fiada das ocorrencias. Está disposto a pagar o bilhete, pergunta o pequeno homem de dentes luzidios e expressão atormentada. Sim, claro, não há escolha, porque não sou eu quem escolhe, foi um acidente e a causa ainda ninguem a explicou, um grande acidente - acrescento. Nos bastidores somos quem realmente somos, sem o desejo de sermos outros, de sermos essas imagens de nos mesmos.
Quem deseja pagar o bilhete, entre, quem não deseja não se preocupe - lá estará na mesma, mas sem o gozo da viagem. A transacção é simples: a tua vida normal em troca do encontro e da ausencia do tempo. O trans-onirico acidental parte todas as noites, pontual, sem atrasos. Das suas janelas salto para a minha outra vida, para a tua, para essas cidades onde já estivemos e para os quartos onde já dormimos, para um outro tempo sem sequencia, onde não existem escolhas mas evidencias. Hoje encontrei-te num enorme quarto, com uma enorme janela. vestias roupas do corpo de outra pessoa e senti no meu colo o calor de um gato de pelo dourado. Na suspensão destes momentos, olho a enorme janela e sinto a tua companhia. Nos feixes de luz que atravessam o pó suspenso compreendo o que sou contigo, sabendo que somente o poderei sentir na viagem do trans-onirico acidental.

c

nunca me ofereças nada
senão
a tua companhia.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Na corrida dos dias, uns com os outros, certamente que os da juventude ganharam, curtos, velozes e elásticos foram enterrar os velhos e à memória cantaram como se fosse sua.

sábado, 13 de junho de 2009

Sto António de Lisboa

e

na manhã quente depois dos assados vem sempre

palavra e coisa para aqui e lembras-te do que disseste para ali, do que pensaste e sentiste, do que desejas-te e fizeste. e da ultima vez e ontem e daquela vez e sempre, afinal foi sempre assim, sempre soube e ai pois isto e aquilo, e, e podia ser tudo simples, ser culpado é o mais fácil, afinal depois de todas as parvoices que já dissemos, o que resta para acreditar?




O sr. Nilismo sentou-se à mesa com uma sardinha, pensaram juntos: vamos criticar sem fundamento o manjerico ou o carapau. Cada um constroi o universo à medida das suas limitações.



os poemas de amor são os mais mentirosos.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

___

Sobre uma linha começou a escrever desenrolando o novelo até ao fim.

sábado, 23 de maio de 2009

A. de cArtomante

Contra este tapete antigo sonho a presença do teu olhar. Persegue-me o brilho do único olho com que me vês: ao outro está reservado o consenso do mundo, onde te partilhas nessa imagem que nos assegura a sanidade. E perseguem-me as tuas palavras. Persegue-me a certeza da imagem nestas sonhada. Eu estarei lá sim, nesse dia em que tudo mudará.


Os olhos escuros escondem um segredo, uma diferença qualitativa e analitica essencial. A, lindissima mulher, traz consigo um olho clinicamente considerado cego. Quando ainda menina, a pequena A viu o olho deixar de ver, com uma pedrada atirada, no recreio da secundária, lá para os lados do Algarve. A sua mãe, na preocupação de mãe, tudo fez para que o recuperasse, temendo ver a filha crescer desfigurada por um olho à deriva, incapaz de focar em sintonia com o outro. Mas tal não sucedeu, foi um facto. Apesar de cega, todos deram graças a Nossa Senhora da Conceição e do Ó, evitando-se ao esforço de compreender o que ficou catalogado como uma excepção na história da medicina óptica : o olho cego comportava-se como se não o fosse, apesar de o ser. Cordenado e certo, em nada desvirtuou a crescente beleza de A. Amada e desejada, apaixonada e delicada, tornou-se mulher nos desgostos amorosos, numa continua e crescente tristeza directamente proporcional aos numero de amados pouco amantes com que se cruzou. O brilho do seu olho cego, assustava os homens que na volupia dos momentos intimos se sentiam atravessados por uma subita consciencia analitica da sua própria natureza. Ao natural desconforto associado, seguia-se o abandono justificado com os argumentos mais banais - confortaveis fachadas na fuga da impossivel assumpção do medo. A. compreendia e conhecia a origem das fugas, e perante a inevitabilidade, vivia a solidão dos encontros - na esperança da diferença de um amanhã mais acompanhado por menos medo. Afinal, desde menina, mesmo antes do incidente na poeirenta secundária, sabia que havia qualquer coisa diferente no modo como percebia as coisas. Um dia, quando visitou a sua avó, viu no centro do peito dela uma bola de fogo, que tudo absorvia. Quando voltou a abrir, lenta e cuidadosamente, um de cada vez, os olhos, percebeu que olho esquerdo via outra coisa que o direito. E em torno da bola de fogo viu dez pessoas, e viu-se a si mesma, no patio da escola a ver a pedra projectil cegar-lhe clinicamente o olho. Como então ninguem acreditou no que insistentemente tentou relatar, também ninguem se recordou, mais tarde, que algures num tempo ido a menina ainda sem dentes relatara com precisão a ocorrencia. Das restantes 9 pessoas, somente conhecia a própria avó, que também lá estava. Não percebeu o que faziam. E eu estava lá.
Dizes-me, olhando com o teu olho que vê, deitada num quarto antigo, na casa fria de uma pessoa ainda mais antiga: vi-te a ti e à tua filha. Estavam lá, centenas de pessoas amontoavam-se e eram voçês quem estava lá. A imagem persegue-me todos os dias, na certeza do seu desfecho.
Conheci A. no passado século. QUANDO pela primeira vez nos encontrámos, olhou-me com o brilho do olho que sabe o que vê e eu soube que o este viu. Quando a criança nasceu A viu. Viu que estaremos lá - eu e quem gerei, no dia em já todos saberemos, que tudo mudou.



quinta-feira, 30 de abril de 2009

p de paraiso e p de promessa

Soube que na sua juventude a senhora trouxera consigo Um corpo desejado pelos homens e grato à volupia. E ainda hoje não há quem deste não se lembre no bairro branco antigo que se debruça sobre o rio. Enquanto O trouxe consigo, O corpo, a senhora cumpriu o fado do desejo, e bem, honrando o calor que lhe corria no sangue. No entanto, mesmo nesses tempos activos, entre cada dia da sua vida, passava uma noite sentada, na poltrona carmin que herdara do tio africano. Na verdade, pouco sabia do antigo dono dessa poltrona sua companhia e que numa manhã de Agosto lhe chegara numa grande caixa de madeira, acompanhada de uma carta sumária, reduzida à estrutura linear das relações de sangue entre o antigo e a nova proprietária.
Quando a conheci, a senhora perdera já O corpo, cedido às noites de vigilia e entregue no curso dos anos aos designios do tempo. É curto o tempo dO corpo. Então, a silhueta do que o tempo e as noites ainda não tinham levado, desenhava-se curvada, todas as manhãs, no banco preto da rua do final do Paraíso. Sobre um livro.
No bairro, onde ninguem lia, a rara actividade constituia matéria para as mais cavalgantes ficções sobre a senhora dO corpo ido. Entre estas, contava-se que nunca fechara os olhos. Nunca. E que por isso, subitamente num dia santo, deixara de ser capaz de olhar para as pessoas. Só via os livros. Castigo diziam uns, alegria sentiam outras, saldando na suposta desgraça a inveja antiga. Inveja dO corpo.
Quando a senhora me olhou com os olhos que nunca se fecharam a senhora disse.
Recorda-te sempre, o amor é uma promessa. e nesta vida somente em duas situações se cumpre: nos livros e nas crianças.
E cada um só vê o que é.
Nunca mais vi senhora no banco do Paraiso, a ler.

terça-feira, 28 de abril de 2009

obliquidade temática

Lady C demorou-se longos anos na defesa de uma singular condição. Em tempos descobrira que a única modalidade possível para uma existência justa residia na condição da Torre de Pisa. Enfim, insistentemente discutira entre letrados e académicos, que essa condição diferia da que se atribui a Deus. Enfim, o dom da obliquididade temática nem sempre é bem acolhido.

domingo, 12 de abril de 2009

latitude D.

pelo cintilar laranja da luz torrada dos candeiros as duvidas prolongavam-se pela noite, fria como se desconhecera por muitas décadas, naquela latitude. Os corações, mirrados pela idade e pelas temperaturas agrestes, contavam mais batitdas do que seria de esperar, tornando as vidas mais intensas e mais curtas. Os domingos carregam de nostalgia as manhãs, sufocam as tardes e a unica coisa boa que trazem é o alivio de acabarem pela noite. De qualquer modo, há sempre promessa da ressurreição.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Jade

No dia em que nasceu o menino dos olhos de Jade, por segundos, as nuvens pararam no céu, as estrelas silenciaram-se e o mar debruou, mais demoradamente do que nunca, a areia com o seu veu de renda. Apesar de nunca ninguem ter notado, o menino dos olhos de Jade sofria antes já de saber falar, de uma dor terrivel, concomitante ao seu ser. Localizada no centro do seu peito, foi dignosticada como asma, alergia aos fenos, mau feitio, ansiedade precoce e por isso, pretexto para uns bons tabefes e grandes doses de cortizona.
Mas, na realidade, a origem dessa dor, alheia ao cardápio das maleitas clinicas, era de origem diafana. O reflexo luminoso das pedras preciosas na sua alma, tornavam-na tão luminosa quanto intolerante ao mal do mundo, ao erro, à injustiça. Somente de noite, quando os seus olhos estavam fechados e bem fechados, o menino dos olhos de jade conseguia apaziguar a dor de que padecia a sua alma, alastrada pelo seu corpo. Era então que sonhava. Sonhava com a luz de que era matéria a sua alma. E sonhava com um homem transparente, alado, que lhe estendia a mão enquanto ambos, suspensos no firmamento, se olhavam demoradamente. Quando acordava, o menino de jade chorava. E chorava por não conseguir compreender porque os outros meninos não amavam a delicadeza das palavras, a subtileza do silencio, o desfolhar das copas das árvores, a pureza da sua irmã. Por não conseguir compreender porque os outros meninos lutavam entre si, disparavam tiros de caçadeira contra os cães, apedrejavam os gatos e perseguiam as meninas pequeninas como eles mas inocentes como nunca chegaram a ser, para lhes apalpar os rabos magrinhos e insinuar outros abusos. Olhando o tecto da sua casa, uma pequenina casa, o menino dos olhos de jade chorava. Prometia a si mesmo que se tornaria forte, corajoso tanto e o suficiente, para compreender. Para compreender todas estas coisas, para compreender porque é que todos os dias tinha de rezar, bem ensinado por seu pai, pedindo perdão por essas coisas e outras que não tinha feito e que não compreendia, e pior, por ser o culpado pelo terrivel estado de um homem que apesar de ter nascido milenios antes dele, por sua culpa tinha sido pregado a uma cruz. O menino dos olhos de Jade queria compreender. Estava certo que na noite do dia em que compreendesse conseguiria segurar a mão do homem transparente, no firmamento.

À medida que crescia, a dor do menino dos olhos de Jade aumentava. Pois, os seus olhos, tambem esses se tornavam maiores. No entanto, com o tempo, o menino dos olhos de jade aprendeu a encontravar no conhecimento do mundo, nos conceitos e na filosofia, nas drogas e no amor casual uma subtil máscara - um rosto, que justificava a sua dor.

Mas o reflexo continuava a iluminar-lhe a alma. Com o tempo, deixou também de sonhar com o homem transparente do firmamento, aliás, deixou completamente de sonhar. Somente por vezes, sonhava com pessoas sem rosto, mudas e comprometidas, em conjura para o matar. Não compreendia que um menino que nasce com olhos de jade nao pode assim morrer. Com a idade, desapareceram os sonhos, a sua dor passou a vestir uma máscara, o seu passaporte foi centenas de vezes carimbado. O menino dos olhos de jade, nunca ficava mais do que poucos meses no mesmo sitio, corria o mundo na urgencia de compreender a sua dor, cada vez maior, cada vez mais facetada. Apesar de se ter tornado forte e destemido o menino de jade ainda chorava, no entanto, todas as noites. Sozinho ou quando a seu lado, um corpo abandonado a si mesmo, confirmava que a paixão mais não é que uma máscara para o grande sofrimento. E chorava na praia, para um buraco, gotas espessas de uma matéria vitrea, preciosa. E depois de chorar continuava. Continuava pelo mundo, procurando no rosto de uma virgem sem pecado, a pureza da luz da sua alma. Procurando nas palavras dos outros homens a clareza da luz da sua alma. Procurando na magia a dissolução do contraste da clareza sua alma com as trevas do mundo. Procurando que nas fiadas de linhas consignadas nos volumosos livros que escrevia nervosa e febrilmente, pudesse compreender - e que os outros compreendessem, a intolerancia da alma ao mal. Os seus olhos espelhavam a luz, o seu rosto a dor. A sua expressão, era a de quem não compreende. Porque nem as palavras, nem a virgindade do corpo, nem as letras eram da mesma natureza da clareza da alma.

No ano em que completou a idade de cristo, o menino dos olhos de jade pisou um rio. Num pais distante, dilacerado por guerras e morte, o menino já homem pisou o grande rio cor de jade que atravessa, insólitamente, a mais árida savana. Não és distinto do que ves, a luz e as trevas. Compreender é compreenderes-te. Disse o vento quando este se aproximou do rio. O menino, depois de ter enchido de lagrimas vitreas um buraco na areia escarlate que bordejava o rio, decidiu. Sentado sob nove sois, dez luas, centenas de nuvens, uma árvore e junto ao grande rio mergulhou, imóvel dentro de si mesmo. Quando se levantou, apenas o primeiro orvalho da noite o olhava - as unicas lagrimas que naquelas imediações restavam.

O rio murmurou, cor de jade. Na noite profunda, o menino olhou para baixo e viu o homem transparente. Estendeu-lhe a mão. Ambos flutuavam no firmamento, sobre a superficie do Grande Rio.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

?

até quando caminharei
para poder
pisar a minha
SOMBRA?

sexta-feira, 20 de março de 2009



Cada noite, conto-te uma estória, das que tu me ensinas. Aprendi a ler o mundo, no desfolhar das copas e no brilho salgado das ondas. contigo. Na tua presença, voltei a nascer, em cada toque, em cada sensação. Conto-te as estorias do mundo que me mostras, da vida que tu me ensinas. Cada noite, antes de te ver partir.

pérolas


As mãos eram pequenas, muito. Muito apertadas, uma contra a outra, não fosse nenhuma delas fugir. De resto, nada indiciava o seguinte desfecho verbal. A senhora, bem posta nas suas pérolas e numa imaculada elegancia de Angorá disse pois:
um dia, quando começar a chorar, nunca mais irei parar.  Até o jovem salgueiro se vergou, seguindo a concordância do vento.  

quarta-feira, 18 de março de 2009

Afinal




Caminhamos sobre o reflexo das estrelas,  no  mar vestido de negro e de espada embainhada. Dirigimo-nos ao horizonte. Não temos destino. 
Ouvimos distantes as pedras rolar, na borda deslizante da baia outrora quente e perto o estalar das gotas da chuva.



Somos tão livres de nos mesmos, tão perto de tudo. Eu e tu. Caminhamos sobre as estrelas, rumo ao horizonte. Sei dizer que te amo em vários idiomas. Sei dizê-lo, mas nem no meu o sei sentir. Vejo como o verde dos teus olhos se adensa, fundo, na minha incerteza. 
Pelas tardes quentes, sinto as tuas costas contra a minha barriga. Esperamos que anoiteça. Digo-te que sei dizer, em vários idiomas, que te amo, mas sei que nem no meu o posso sentir. Somos o mesmo corpo, a mesma textura, a mesma cor. O vento brilha no teu cabelo. Esperemos que anoiteça. Caminharemos sobre a estrelas. a chuva apaziguará o meu coração. Afinal.

terça-feira, 17 de março de 2009

Sorbonne



Gosto de beber café de manhã. E gosto das espirais perfumadas que se dispersam, ritmadas e acres, pela atmosfera em silêncio da minha recém-acordada casa. 

Por incrivel que pareça, ontem de manhã, antes da casa acordar, das espirais flutuarem e do soalho ranger, o telefone tocou. Sim, não é o facto de um telefone tocar que torna tudo isto matéria singular. O insólito reside no facto de que: 1º eu não tenho um telefone; 2º ouvi as declarações mais desacertadas; 3º nunca estudei na Sorbonne.

O soalho range - é antiga a minha casa. 
Como toca um telefone se não tenho telefone? como toca um telefone amarelo torrado, no centro no meu corredor? ...nunca mais bebi!
- estou? balbucio rouco. Ouço uma musica infernal, vinda do outro lado. Festiva, Balcãs?! Balcãs?! Alguem me liga dos balcãs em festa para um telefone de fio desligado, amarelo. amarelo!
-Sim, está certo no que afirma senhor. Ouvi vindo do outro lado. Lamento informa-lo, mas aqui fala do departamento da Alegria de Viver. disse uma voz de mulher, firme. Em virtude das suas ultimas questões existenciais, continuou, vimo-nos obrigados a estabelecer este contacto.
- boa... respondi. bem quer dizer, obrigado, não sei...
- Pois sim, tendo em conta que tem tentado regrar o irregravel, preocupando-se, a Comissão Instaladora das Celebrações, vem lembrar-lhe a alinea a) do artigo 1º do Código dos que Cumprem as suas Obrigações.
-Ok...diga lá...
-Lembro-lhe, continuou a mulher, que toda a celebração, todo o encontro funciona como uma chama - reúne dois ingredientes e a partir destes consome-se a si mesma. Alegria de viver...meu caro...alegria de viver...julgámos, precipitadamente, verifico, que tinha assimilado isto no seu ultimo ano na Sorbonne. Pois...suspirou...e espero que se recorde também que em virtude deste facto, jamais poderá impor regras, normas, o que for dessas coisas banais, burguesas -, a qualquer celebração, mas, e tão somente, disfruta-la. Aí reside a magia das celebrações, a intensidade dos encontros.

- pois, se a senhora o diz...'tou?! 'tou?. Nem voz nem musica. Mas que mal educada! Como?
-Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii. ouço somente um longo e solitário piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii.

Estou desolado. Depois do telefonema voltei a dormir. E nunca mais encontrei um telefone amarelo.