terça-feira, 17 de março de 2009

a mala

Sempre gostei de olhar para dentro da mala das senhoras. É um pouco inconveniente, eu sei – e há quem não goste. Com um olhar certeiro lançado para dentro de uma mala, consigo fazer uma rápida arqueologia dos afectos, das afinidades electivas, dos gostos e até de segredos de quem a usa. Já vi muitas malas. Malas no metro, malas no ginásio, malas no comboio, malas no avião, malas nas bibliotecas, malas de namoradas, malas de amigas, malas das tias, malas das avós, a mala castanha da minha mãe, malas singelas, malas obscenas, malas desarrumadas, malas aprumadas. Escovas de cabelo, baton, agenda, chaves de casa, as vezes do carro. Por vezes um livro, normalmente romances, e sempre um telemóvel. Apesar de tudo, o conteúdo pouco varia.
Um dia encontrei uma mala preta. Não era de ninguém, era por sim mesma. Não existia por ser de alguém, sempre existiu como mala sem que para o ser tivesse de ser submetida ao uso. Cruzámo-nos numa casa de chá. Eu bebia chá de âmbar e as minhas mãos – mãos iluminadas pelo Inverno rasante, partilhavam com o tampo da mesa a sombra do gradeado da janela.
A mala estava lá sentada, à minha frente, muda. Mala média, preta, tecido, indiferente, prática. Para usar a tiracolo. A primeira e única coisa que me disse – e com orgulho - foi: Nunca fui roubada. Nada mais soube, pela sua própria voz. E nunca soube porque é que ela estava naquela casa de chá, porque é que me disse aquilo, como lá chegou e para onde foi. Também não me preocupei com o assunto. Nem, naquele momento, se seria a mala de alguém. Estava ali, sentou-se na minha mesa e falou comigo. Que argumentos mais necessito para justificar o facto de a ter aberto? Já reconheci a inconveniência da minha curiosidade, já sei tudo isso – as malas não se sentam porque não têm pernas, as malas não falam, a mala é um artefacto não uma entidade com autonomia e vontade, quando é que cresces, quando é que te deixas de bizarrias e passas a viver no mundo das pessoas normais?, fazia-te bem deixares-te dessas merdas que assustam os outros, patati, patata, - já sei isso tudo, e não me interessa. Nem um bocadinho. Por isso abri a mala. Ela falou, eu libertei as minhas mãos da intimidade com a luz do Inverno e, claro!, abri a mala. Se me arrependo? claro que não!
Que desilusão. Nada de especial, mala banal. Fala e é banal. Porra, que desperdício! – foi o que pensei. Um livro de poesia, um livro de haikai todo riscado com desenhos -( o que as pessoas fazem aos livros !) –, um livro das polaroids russas e poemas do Tarkovsky; uma máquina polaroid land camera 100, um pacote de filme fuji, umas chaves atadas a um cordão de cabedal, uma caneta preta, uma lapiseira, dois cds sem capa, algumas fotografias soltas, sementes secas, uma fotografia de três velhinhas a acenar do céu, uns óculos ray-ban, um telemóvel todo partido, uma giboia com aproximadamente 20 metros deformada na zona do abdomén pelo último menino que comeu, um sofá luís XIV bem talhado e forrado com o adamascado que juro ser mais tardio que a estrutura, uma iluminura que se soltou de um livro e goza as liberdades da não subjugação a um suporte e a uma narrativa – é uma letra capital dourada, um A gótico rodeado de rosas silvestres (que abanam com esta corrente de ar) e colibris com patas de cão, uma edição antiga das Metamorfoses de Ovidio em escala pequena, ( dois centímetros, aproximadamente), um embondeiro, um lustre de tamanho médio. Entre outras coisas mais banais ainda.
A única coisa que não percebo é como é que nunca foi roubada.

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