terça-feira, 7 de abril de 2009

Jade

No dia em que nasceu o menino dos olhos de Jade, por segundos, as nuvens pararam no céu, as estrelas silenciaram-se e o mar debruou, mais demoradamente do que nunca, a areia com o seu veu de renda. Apesar de nunca ninguem ter notado, o menino dos olhos de Jade sofria antes já de saber falar, de uma dor terrivel, concomitante ao seu ser. Localizada no centro do seu peito, foi dignosticada como asma, alergia aos fenos, mau feitio, ansiedade precoce e por isso, pretexto para uns bons tabefes e grandes doses de cortizona.
Mas, na realidade, a origem dessa dor, alheia ao cardápio das maleitas clinicas, era de origem diafana. O reflexo luminoso das pedras preciosas na sua alma, tornavam-na tão luminosa quanto intolerante ao mal do mundo, ao erro, à injustiça. Somente de noite, quando os seus olhos estavam fechados e bem fechados, o menino dos olhos de jade conseguia apaziguar a dor de que padecia a sua alma, alastrada pelo seu corpo. Era então que sonhava. Sonhava com a luz de que era matéria a sua alma. E sonhava com um homem transparente, alado, que lhe estendia a mão enquanto ambos, suspensos no firmamento, se olhavam demoradamente. Quando acordava, o menino de jade chorava. E chorava por não conseguir compreender porque os outros meninos não amavam a delicadeza das palavras, a subtileza do silencio, o desfolhar das copas das árvores, a pureza da sua irmã. Por não conseguir compreender porque os outros meninos lutavam entre si, disparavam tiros de caçadeira contra os cães, apedrejavam os gatos e perseguiam as meninas pequeninas como eles mas inocentes como nunca chegaram a ser, para lhes apalpar os rabos magrinhos e insinuar outros abusos. Olhando o tecto da sua casa, uma pequenina casa, o menino dos olhos de jade chorava. Prometia a si mesmo que se tornaria forte, corajoso tanto e o suficiente, para compreender. Para compreender todas estas coisas, para compreender porque é que todos os dias tinha de rezar, bem ensinado por seu pai, pedindo perdão por essas coisas e outras que não tinha feito e que não compreendia, e pior, por ser o culpado pelo terrivel estado de um homem que apesar de ter nascido milenios antes dele, por sua culpa tinha sido pregado a uma cruz. O menino dos olhos de Jade queria compreender. Estava certo que na noite do dia em que compreendesse conseguiria segurar a mão do homem transparente, no firmamento.

À medida que crescia, a dor do menino dos olhos de Jade aumentava. Pois, os seus olhos, tambem esses se tornavam maiores. No entanto, com o tempo, o menino dos olhos de jade aprendeu a encontravar no conhecimento do mundo, nos conceitos e na filosofia, nas drogas e no amor casual uma subtil máscara - um rosto, que justificava a sua dor.

Mas o reflexo continuava a iluminar-lhe a alma. Com o tempo, deixou também de sonhar com o homem transparente do firmamento, aliás, deixou completamente de sonhar. Somente por vezes, sonhava com pessoas sem rosto, mudas e comprometidas, em conjura para o matar. Não compreendia que um menino que nasce com olhos de jade nao pode assim morrer. Com a idade, desapareceram os sonhos, a sua dor passou a vestir uma máscara, o seu passaporte foi centenas de vezes carimbado. O menino dos olhos de jade, nunca ficava mais do que poucos meses no mesmo sitio, corria o mundo na urgencia de compreender a sua dor, cada vez maior, cada vez mais facetada. Apesar de se ter tornado forte e destemido o menino de jade ainda chorava, no entanto, todas as noites. Sozinho ou quando a seu lado, um corpo abandonado a si mesmo, confirmava que a paixão mais não é que uma máscara para o grande sofrimento. E chorava na praia, para um buraco, gotas espessas de uma matéria vitrea, preciosa. E depois de chorar continuava. Continuava pelo mundo, procurando no rosto de uma virgem sem pecado, a pureza da luz da sua alma. Procurando nas palavras dos outros homens a clareza da luz da sua alma. Procurando na magia a dissolução do contraste da clareza sua alma com as trevas do mundo. Procurando que nas fiadas de linhas consignadas nos volumosos livros que escrevia nervosa e febrilmente, pudesse compreender - e que os outros compreendessem, a intolerancia da alma ao mal. Os seus olhos espelhavam a luz, o seu rosto a dor. A sua expressão, era a de quem não compreende. Porque nem as palavras, nem a virgindade do corpo, nem as letras eram da mesma natureza da clareza da alma.

No ano em que completou a idade de cristo, o menino dos olhos de jade pisou um rio. Num pais distante, dilacerado por guerras e morte, o menino já homem pisou o grande rio cor de jade que atravessa, insólitamente, a mais árida savana. Não és distinto do que ves, a luz e as trevas. Compreender é compreenderes-te. Disse o vento quando este se aproximou do rio. O menino, depois de ter enchido de lagrimas vitreas um buraco na areia escarlate que bordejava o rio, decidiu. Sentado sob nove sois, dez luas, centenas de nuvens, uma árvore e junto ao grande rio mergulhou, imóvel dentro de si mesmo. Quando se levantou, apenas o primeiro orvalho da noite o olhava - as unicas lagrimas que naquelas imediações restavam.

O rio murmurou, cor de jade. Na noite profunda, o menino olhou para baixo e viu o homem transparente. Estendeu-lhe a mão. Ambos flutuavam no firmamento, sobre a superficie do Grande Rio.