terça-feira, 18 de agosto de 2009

A cauda do cometa

Em Amares, de onde é o performer que cozinha para o seu público que assim passa a ser conviva e parte do ritual, existe uma biblioteca. Nessa biblioteca, escondida e perdida, uma fiada de livros de lombada verde e data de edição ilegível, versa sobre o assunto dos vestígios de matéria estrelar, e coisas afins, no planeta Terra. Às longas horas que dediquei a esses livros, em estudo acurado e tempo dedicado, corresponderam dias de Inverno, solitários nas copas despidas e musicais no encontro da chuva com as janelas. Dias tão frios quanto escuros, dias que repousam na memória do mesmo modo que o feixe amarelo-torrado do candeeiro de pé que me serviu de companhia, se deitou por longas horas sobre as letras dos livros da lombada verde. Para além das exaustivas descrições e relações químicas entre metais e outros elementos, a sua datação e catalogação, a Colecção dedicou alguns exemplares às Origens e Manifestações, entre o tomo V e VII. O Capitulo, II do tomo V, é aberto com notável uma gravura datada de 1610, assinada VM. Nesta singular imagem, um conjunto de árvores açoitadas pelo vento, presenciam a chegada de um cometa, de grande cauda, rasgando o céu. Nas longas horas que dediquei à observação desta rara imagem, percebi que o mapa celeste desenhava um dia, uma hora e uma localização geográfica precisa. Que as árvores, desenhadas com a perícia de um Vandelli, eram retratos e que à direcção do vento, de norte para sul, correspondia uma progressiva claridade. Na singularidade, por vezes bastante aborrecida, do modo como a Colecção se organizava, somente consegui encontrar a justificação para a gravura no último capitulo do tomo VII. Nos capítulos que os mediaram, aprendi sobre a relação entre as árvores e o vento, entre os minerais cósmicos presentes no solo e a floração na primavera, entre a beleza das copas e a profundidade das raízes. Assim, chegada ao derradeiro capitulo XVI do tomo VII, estava preparada para compreender a gravura de traço holandês e data setecentista. Neste, refere-se que ilustra um famoso conto vernáculo de acordo com o qual, num dia preciso do mês de Fevereiro o vento claro, chamado vento branco, brandiu sem piedade sobre toda a terra. Na sua origem desconhecida o conto passou de boca em boca até à sua compilação pelo editor anónimo da colecção de lombada verde. Nas tardes em que deixei descansar a biblioteca, questionei várias pessoas sobre a gravura e o seu significado. Mais tarde, sobre o conto. Ninguem destes se recordava e a única referência que consegui apontou para uma laje coberta de musgo, servindo de pedra de fecho ao arco da sacristia e onde se via uma figura feminina, sob a cabeça da qual pairava uma estrela. Na inocente alegria da confirmação, encontrei nesta um testemunho de que a data da gravura poderia ser verdadeira e de que o conto não seria o resultado da imaginação cavalgante do editor. O conto, tal como a lage, referem uma mulher, uma figura feminina que congrega no seu corpo a materizalização das relações entre todos os elementos, entre todos os vestígios estrelares e a vida na terra. Assim, no dia em que a constelação de Sagitário deu lugar à constelação de Aquário, um vento quente, raríssimo nos Invernos do hemisfério Norte e pela sua orientação, fez dançar todas as árvores, e numa coreografia de tal modo ritmada, que do som resultante da deslocação do ar por entre os ramos se compôs um enigmático verso: Depois de ter chegado ela mesma se vai esquecer/ que sendo uma deusa, viverá para compreender/e somente quem me ouvir/poderá na madeixa do seu cabelo de noite/a cauda do cometa descobrir. O tomo VIII e VIII fecham a colecção com um apanhado de outros contos, nenhum deles ilustrado. Não compreendo porquê.

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