quinta-feira, 28 de junho de 2007

O Jogo dos espelhos.No silêncio, tal como na ausência

Por vezes, no lusco-fusco da consciência, quando ainda não dormimos mas também não estamos despertos, sonhamos - ou melhor, somos visitados. Somos atravessados por vidas - strata de imagens, arqueologias de afectos, condensados de sentimentos e fotografias desfocadas de nós mesmos.
Num desses dias em que as chuvas cobriram de verde os caminhos e em que o capim se perfumou de frondoso lustre, fui visitado. Num espelho, outro espelho estava reflectido. Um espelho que é objecto de um outro espelho confirma a natureza do espelho, pensei. Confirma-se a si mesmo. Deixei de respirar. O espelho não se limitava a reflectir e, no espaço tenso deixado pela suspensão da minha respiração, tive a certeza de que os espelhos se procuravam nos reflexos. Sabiam-se não coincidentes com a moldura ( uma barroca, outra resultado dessa linhagem de objectos nascida depois da grande exposição de 1925), nem com a forma. Nem com o tempo, nem com os percursos ( quantas vidas não viram já os espelhos de tantos séculos').
Encontravam-se na matéria do reflexo, confirmavam-se no encontro com o outro espelho, sem no entanto, nenhum deles ter consciencia de ser um espelho - o reflexo do mesmo encontra o mesmo, mas sem objecto, o mesmo é o seu próprio encontro. O Jogo dos espelhos. Acordei, ou melhor, regressei. A chuva rolava, de novo, em fiadas de pérolas pelos vidros do carro. A viagem continua. Como o jogo dos espelhos.
Os rails rasgam a branco, sincopada e ritmicamente, a chapa nocturna. Deixou de chover.A viagem continua. Sinto o cheiro húmido da noite e tenho por companhia estes céus estrelados que somente o hemisfério sul nos pode dar. No silencio, tal como na ausência, todas as presenças se confirmam.
Viajo como um cometa, tenho cauda de asfalto.
Sempre soube que é na noite das viagens que as memórias me tomam - ecoam, formatadas à medida da música que salta do rádio. E deixo de ouvir. Sou tomado pela imagem do eco das semi-transparências que se encadeiam, entre mim e a estrada que corre, como embaixadas exóticas de raridades, aberrações e sublime maravilhoso. No exubrante cortejo que se anima sobre o tablier do carro, vejo-vos a todos. Por vezes sinto o cheiro dos momentos mais felizes, e com estranheza o calor, a vibração de alguns corpos com que me cruzei. Tudo se actualiza quando sinto. Quando sinto uma saudade tão antiga, uma saudade de um silêncio antigo.
No silêncio, tal como na ausência, todas as presenças se confirmam.

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