sábado, 23 de maio de 2009

A. de cArtomante

Contra este tapete antigo sonho a presença do teu olhar. Persegue-me o brilho do único olho com que me vês: ao outro está reservado o consenso do mundo, onde te partilhas nessa imagem que nos assegura a sanidade. E perseguem-me as tuas palavras. Persegue-me a certeza da imagem nestas sonhada. Eu estarei lá sim, nesse dia em que tudo mudará.


Os olhos escuros escondem um segredo, uma diferença qualitativa e analitica essencial. A, lindissima mulher, traz consigo um olho clinicamente considerado cego. Quando ainda menina, a pequena A viu o olho deixar de ver, com uma pedrada atirada, no recreio da secundária, lá para os lados do Algarve. A sua mãe, na preocupação de mãe, tudo fez para que o recuperasse, temendo ver a filha crescer desfigurada por um olho à deriva, incapaz de focar em sintonia com o outro. Mas tal não sucedeu, foi um facto. Apesar de cega, todos deram graças a Nossa Senhora da Conceição e do Ó, evitando-se ao esforço de compreender o que ficou catalogado como uma excepção na história da medicina óptica : o olho cego comportava-se como se não o fosse, apesar de o ser. Cordenado e certo, em nada desvirtuou a crescente beleza de A. Amada e desejada, apaixonada e delicada, tornou-se mulher nos desgostos amorosos, numa continua e crescente tristeza directamente proporcional aos numero de amados pouco amantes com que se cruzou. O brilho do seu olho cego, assustava os homens que na volupia dos momentos intimos se sentiam atravessados por uma subita consciencia analitica da sua própria natureza. Ao natural desconforto associado, seguia-se o abandono justificado com os argumentos mais banais - confortaveis fachadas na fuga da impossivel assumpção do medo. A. compreendia e conhecia a origem das fugas, e perante a inevitabilidade, vivia a solidão dos encontros - na esperança da diferença de um amanhã mais acompanhado por menos medo. Afinal, desde menina, mesmo antes do incidente na poeirenta secundária, sabia que havia qualquer coisa diferente no modo como percebia as coisas. Um dia, quando visitou a sua avó, viu no centro do peito dela uma bola de fogo, que tudo absorvia. Quando voltou a abrir, lenta e cuidadosamente, um de cada vez, os olhos, percebeu que olho esquerdo via outra coisa que o direito. E em torno da bola de fogo viu dez pessoas, e viu-se a si mesma, no patio da escola a ver a pedra projectil cegar-lhe clinicamente o olho. Como então ninguem acreditou no que insistentemente tentou relatar, também ninguem se recordou, mais tarde, que algures num tempo ido a menina ainda sem dentes relatara com precisão a ocorrencia. Das restantes 9 pessoas, somente conhecia a própria avó, que também lá estava. Não percebeu o que faziam. E eu estava lá.
Dizes-me, olhando com o teu olho que vê, deitada num quarto antigo, na casa fria de uma pessoa ainda mais antiga: vi-te a ti e à tua filha. Estavam lá, centenas de pessoas amontoavam-se e eram voçês quem estava lá. A imagem persegue-me todos os dias, na certeza do seu desfecho.
Conheci A. no passado século. QUANDO pela primeira vez nos encontrámos, olhou-me com o brilho do olho que sabe o que vê e eu soube que o este viu. Quando a criança nasceu A viu. Viu que estaremos lá - eu e quem gerei, no dia em já todos saberemos, que tudo mudou.



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